domingo, outubro 23, 2011

O Conceito de Liberdade esmiuçado no filme “Amistad”

“A liberdade é mais importante que o pão.”
(Nelson Rodrigues)

“Liberdade

— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.”  

Miguel Torga, célebre escritor modernista português, in “Diário XII”

            Não é possível falar sobre liberdade e, mais ainda, discutir o modo como ela aparece no filme “Amistad”, de Steven Spielberg, quando praticamente desconhecemos o conceito. Alisemos, portanto, quais são os “alicerces filosóficos” que sustentam essa palavra. Num primeiro momento, em uma análise de cunho comum, diz-se que liberdade é a capacidade de escolher uma coisa dentre duas ou mais, isto é, poder fazer escolhas durante a existência. O filósofo e religioso francês Jean Buridan (1300-1358), por exemplo, considerava que ser livre é não ter mais propensão a fazer uma do que outra, entre duas alternativas. Eu, por exemplo, tenho duas opções: posso escolher escrever esse relato ou não – tenho liberdade para isso; as consequências da minha escolha já são outros quinhentos...
            Não só conceitualmente, mas quotidianamente também, atribuímos a liberdade ao indivíduo provido de senso racional que é livre. Não se trata da desmembração entre liberdade e homem, mas sim de uma sinergia entre ambos para a auto-afirmação do Ego (eu) e sua existência. E nesse sentido, unimos também a Vontade a Liberdade, pois se observa que o querer ser livre é a força-motriz e, paradoxalmente, o instrumento para a libertação do homem.
            Creio que uma das melhores análises filosóficas sobre o conceito de liberdade que pode ser aplicada ao filme “Amistad” é a do filósofo francês Jean-Paul Sartre, que afirma ser a liberdade a condição ontológica do ser humano. O homem é, antes de tudo, livre. O homem é livre mesmo de uma essência particular, como não o são os objetos do mundo, as coisas. Livre a um ponto tal que pode ser considerada a brecha por onde o Nada encontra seu espaço na ontologia. Ele está, em sua essência humana, fadado a ser livre; ele é, ontologicamente, obrigado a fazer escolhas, obrigado a exercer sua liberdade intrínseca. Eu posso, na condição de ser humano, escolher permanecer preso por grilhões que dilaceram minha carne ou tentar, por meio da minha própria condição física, soltar-me. Sou obrigado a escolher se permaneço num estado ou se mudo para outro. Em vários momentos do filme o personagem principal é obrigado a exercer sua liberdade; comandar uma revolta e mobilizar seus amigos conterrâneos foi um exemplo disso. E os que o seguiram também exerceram sua liberdade, posto que tinham a opção de não fazê-lo. Percebe? É impossível não escolhermos, é impossível não fazermos escolhas.
            Partindo do conceito de Buridan e o estruturando analiticamente com as considerações de Sartre, concluímos que, por existir, somos livres. Eu diria até que nós só existimos por sermos livres. Se podemos escolher, se podemos fazer escolhas, ontologicamente garantimos nossa existência.

                                                                                   Eliakim Ferreira Oliveira, São Paulo, 16/10/11

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