segunda-feira, junho 20, 2011

O Empirista do Ele-Mesmo: Alberto Caeiro, O Sensitivo e Naturalista de Fernando Pessoa


"O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa. [...]"

Como já se constatou, para cada um dos seus heterônimos, o célebre e aclamadíssimo poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) desenvolveu uma biografia, um horóscopo, uma descrição física completa, características morais, intelectuais e ideológicas. Entretanto, deve-se frisar que na carta escrita ao crítico literário Adolfo Casais Monteiro, em 13 de janeiro de 1935, na qual Pessoa explicava detalhadamente o momento do surgimento dos heterônimos - em um instante de introspecção (um insight) -, a biografia de Alberto Caeiro, o heterônimo sensitivo e "intrínseco" à Natureza, foi a menos trabalhada e, quiçá, articulada:"Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. [...] Caeiro era de estatura média e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. [...] Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; [...] Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. [...] Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever [...] Caeiro escrevia mal o português [...]". No entanto, na condição de poeta como era, Caeiro não carecia realmente de demasiada articulação ou detalhamento biográfico: seus excepcionais e intrigantes poemas, que refletem-no, fazem esse papel biográfico por ele e por Pessoa.

Como postei anteriormente, diz Fernando Pessoa, embora não deixando de apontar para o mau português de seu "Mestre", que escrevia em nome dele por pura e abrupta inspiração, sem conhecer ou ao menos calcular o que escreveria. De fato, Alberto Caeiro é o heterônimo mais distante e mais distinto do poeta; se este afirmava, em poesia, que "O que em mim sente 'stá pensando", aquele possui um avesso posicionamento:

"[...]
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
[...]"

Caeiro viveu quase toda a sua existência numa quinta do Ribatejo - a Borda d'Água lusitana - e aí escreveu O Guardador de RebanhosO Pastor Amoroso e Os Poemas Inconjuntos, sendo que os últimos versos são de Lisboa, quando já se encontrava gravemente doente, acometido de tuberculose.

E acima de tudo, Caeiro é o poeta da Natureza. Seus versos captam um modo de estar no mundo muito próprio, muito peculiar e, nisso, ele elimina tudo o que está na forma de pensamento ou de transcendência - na visão do poeta, não existe interioridade:

"Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
[...]
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
[...]
Metafísica? Que metafísica têm aqueles árvores?
[...]
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
'Constituição íntima das coisas'...
'Sentido íntimo do Universo'...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
[...]"

Ou seja, para Alberto Caeiro, existe apenas a realidade mesmo, palpável, visível, percebida pelos sentidos. Pensar é estar doente, não há razão para pensar, faz pouco da filosofia, da religião e da poesia: "O único mistério é haver quem pense nos mistérios", e quem pensa nos mistérios são aqueles incapazes de perceber a Natureza, que vale mais do que os seus pensamentos. A Natureza, para ele, é perfeita, ela "não sabe o que faz", não pensa  e "por isso não erra e é comum e boa". Mas se tu considerasses que o pensar é o refletir, deparamo-nos com o fato de Caeiro pensar, e, por consequência, contradizer-se, haja vista que seus poemas são a mais bela reflexão; porém, se você considerar que o pensar e o refletir são diferentes, sua concepção poético-filosófica é aceitável e extremamente compreensível. Contudo, não querendo eu aniquilar tais encantadoras e originais ideias, é interessante entender que a reflexão é uma volta do pensamento em si, uma colocação analítica do pensamento, sendo necessário que se realize o ato de pensar para se chegar à reflexão - isto é, sem o pensamento, não há reflexão, e nós devemos considerar que, supostamente, os poemas, neste caso, são reflexões sensoriais; sem o pensar, não poderão de modo algum existir. Entendeste? Bem, esqueçamos esse meu devaneio e direcionemo-nos para a compreensão do Caeiro.

Segundo o poeta, "O único sentido íntimo das coisas/É elas não terem sentido íntimo nenhum". É como Caeiro nega o mistério do mundo:

"O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
[...]
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sòzinhos: -
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas."

Ao negar o mistério das coisas, Alberto Caeiro se torna diferente de todos os outros heterônimos e do próprio Fernando Pessoa, os seus discípulos; ele não deseja a interferência da memória ou do pensamento no seu contato com a Natureza, procurando com ela uma relação direta, feita somente da sensação pura, do que ouve, do que vê. Ele dessa maneira, a meu ver, transforma-se em um empirista, um poeta tipicamente empirista, pois, mais do que a razão, valoriza os sentidos. Ele é o mestre dos outros heterônimos, como o próprio ortônimo (o Pessoa) afirma, porque possui a sabedoria natural e a calma que seus discípulos não têm. Com seu objetivismo total, ele representa para os demais uma fonte de inspiração e de segurança. E tais considerações minhas ainda não sintetizam a essência de Caeiro, e nem chegam perto desse feito... ... ... ... Não é verdade, caro Alberto Caeiro, "Senhor das Reticências"...?




Eliakim Ferreira Oliveira é colunista e colaborador desse BLOG

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