sexta-feira, maio 27, 2011

O Pessoa na pessoa....



Essa semana foi marcada pelo reencontro com o poeta português Fernando Pessoa nas aulas de Filosofia. O seu heterônimo Alberto Caieiro foi evocado. Caeiro foi um poeta ligado à natureza, que desprezava  o idealismo filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão ("pensar é estar doente dos olhos"). Proclamava-se assim um anti-metafísico. Afirmava que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. É fácil reconhecê-lo pela sua objetividade visual bem como por seu interesse pela natureza, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar. Apresentava-se como um simples "guardador de rebanhos" que só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. Foi um poeta de completa simplicidade, e considerava que a sensação é a única realidade.


Abaixo um artigo inédito escrito por Eiakin Araújo, grande admirador e estudioso do poeta que versa acerca de outro heterônimo de Fernando Pessoa Bernardo Soares.




Um "Não-Livro" Escrito Por um "Não-Alguém": O Livro do Desassossego


"Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo."

"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer."

Cá, no Brasil, dificilmente alguém nunca ouviu falar do célebre poeta português Fernando Pessoa. Esse poeta nos deixou uma espécie de espanto perante o mundo e perante nós mesmos. Talvez, viver cansava-lhe ou entediava-lhe em certo sentido, levando-o a criar consciências que vivessem, quem sabe?, por ele, frisando-se que a literatura é uma forma de catarse, de libertação. De tal fato, nasciam os conhecidos heterônimos, as personalidades que, em Pessoa, criavam um Universo-Infinitamente-Abstrato, e belo por si só, pois, por ser como é, não carece de interpretação, salientando-se que automaticamente se dá no instante exato em que impressiona o leitor. Os heterônimos poupavam-lhe o esforço de viver, mas mesmo assim ainda intensamente vivia, pelos sentidos, já "dissecados" e compreendidos por suas personas. No texto em que se segue, procuro vos apresentar uma das maiores obras de Pessoa, quiçá a única em prosa, escrita pelo semi-heterônimo Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros num escritório de Lisboa.
Pode-se dizer que, para lhe anular o esforço de organizar e publicar o que há de mais rico em sua prosa, Pessoa inventou o fragmentado Livro do Desassossego. O narrador principal (mas não totalmente exclusivo) das centenas de fragmentos que compõem tal livro é o "semi-heterônimo" Bernardo Soares. Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, ele escreve sua "autobiografia sem factos", sem encadeamento narrativo claro e sem uma noção de tempo definida, podendo a obra ser até considerado atemporal. Embora tendendo para um ensaio, foi nesta obra que Fernando Pessoa se aproximou mais de um romance. Os temas - confissões privadas, fulgurações, reflexões e devaneios "estéticos" sobre a paixão, a moral e o conhecimento -, adequados a um diário íntimo, são permeados pelo tom de uma intimidade que nunca encontrará ponto de repouso. Há nessa obra um mundo, no qual flui todas as expectativas poéticas de Fernando Pessoa.
Em relação a Bernardo Soares, surge uma questão: ora bolas, por que um "semi-heterônimo" e não um heterônimo, como as outras "personas" de Pessoa? Numa carta escrita ao crítico literário português Adolfo Casais Monteiro, Pessoa explica essa consideração: "É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a este, e o português perfeitamente igual..." Ou seja, Bernardo Soares pode ser considerado como a personalidade que mais se aproxima da de Fernando Pessoa, sendo uma mutilação desta. Portanto, se nós quisermos realmente conhecer Fernando Pessoa, o próprio (e não "meras" personas) devemos consultar O Livro do Desassossego, o qual é "personificadamente" o Sr. Pessoa, um tanto mais disfórico, "anti-afetivo", brando e com uma monotonia-tendendo-para-a-estética.
Quando se lê esse livro, percebe-se um peculiar tédio e cansaço na escrita, os quais temos ideia da existência em Pessoa quando lemos a poesia de Álvaro de Campos(que passou por seu momento eufórico e disfórico):

"O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço. [...]"

Em O Livro do Desassossego, sua visão perante o mundo passa pela análise de Bernardo Soares, e derruba, talvez, algumas visões equivocadas sobre este. A Lisboa retratada é um "submúltiplo" do próprio mundo em si, no entanto, não menor em moral que o próprio, somente em extensão.

"[...] Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas… Intervalo… Nada…

De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo… Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter… Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo… Sim, croché… [...]" Bernardo Soares

Eliakim Ferreira Oliveira tem 15 anos e é colunista deste BLOG.


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