quarta-feira, setembro 15, 2010

Esboços acerca da Pós-Modernidade




Compreender o debate sobre a pós-modernidade é para nós um tema heurístico para o encaminhamento da problemática que ronda a pesquisa sobre cibercultura e seus efeitos.
Aderimos à corrente que interpreta a pós-modernidade como fase de transição e um período inacabado da história humana.  É inegável que o sistema produtivo atual marca longa distância com o que se estendeu até a primeira metade do século XX. A tecnologia avançou extraordinariamente na linha de produção de bens de curta duração, e isso daria à pós- modernidade a característica de era pós-industrial, entendendo-se por industrial a fase em que prevalecia a indústria pesada e a produção de bens de longa duração.
 É preciso determinar a origem do conceito de pós-modernidade. Em 1979 foi publicado o primeiro livro que trata da pós-modernidade como mudança geral na condição humana. Trata-se de A condição pós-moderna de Jean François Lyotard. A obra de caráter filosófico foi realizada por conta de uma encomenda para produzir um relatório sobre o estado do ‘conhecimento’ contemporâneo para o conselho universitário de Quebec. (ANDERSON, 1999).
Para Lyotard, a pós-modernidade liga-se ao surgimento de uma sociedade pós-industrial na qual o conhecimento tornara-se a principal força econômica. A sociedade pós-moderna é concebida como uma rede de comunicações lingüísticas. A ciência transformou-se num jogo de linguagem e não pode mais reivindicar o privilégio sobre outras formas de conhecimentos. Para ele, a pós-modernidade configura: “a incredulidade em relação aos metarrelatos’ (LYOTARD, 2004, P. xvi).
Qual a fronteira entre o moderno e o pós-moderno? Precisamente, a modernidade ergueu-se sobre a crença inexorável na Razão expressa historicamente no ideário Iluminista do século XVIII. O Iluminismo, caudatário do pensamento racional greco-romano, apregoava a emancipação da humanidade, isto é, a libertação das tutelas próprias da infância. Implícita na idéia de emancipação estava a de autonomia. O homem iluminado é aquele que sabe fazer uso da própria Razão. O reconhecimento que faz das leis da natureza ou a sua aceitação das normas da moral obedece unicamente aos critérios da evidência e da certeza. Nada lhe é imposto de fora, mas tudo encontra a sua justificação no interior do sujeito. O projeto moderno era tributário histórico desse conjunto de idéias que se sintetizou na ideologia do progresso técnico e tecnológico.  O projeto Iluminista apresentou uma concepção de progresso, que foi dominante no pensamento europeu, tendo chegado ao auge com a belle époque:
Para Max Weber ainda era evidente a relação interna, e não meramente contigente, entre a modernidade e aquilo que designou como racionalismo ocidental. Descreveu como “racional” aquele processo de desencantamento ocorrido na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do mundo, criou uma cultura profana. As ciências empíricas modernas, as artes tornadas autônomas e as teorias morais e jurídicas fundamentadas em princípios formaram esferas culturais de valor que possibilitaram processos de aprendizado de problemas teóricos, estéticos ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades internas. (HABERMAS, 2000, p. 3)
O traço definidor da condição pós-moderna, ao contrário, é a perda da credibilidade das metanarrativas, ou seja, dos grandes discursos teleológicos e das utopias. Para Lyotard a dissolução das metanarrativas está associada: “devido a evolução imanente das próprias ciências: por um lado, através de uma pluralização de argumentos, como a proliferação do paradoxo e do paralogismo (...), e, por outro lado, por uma tecnificação da prova, na qual aparatos dispendiosos comandados pelo capital ou pelo Estado reduzem a ‘verdade’ ao desempenho.” (ANDERSON, 1999, p. 33)
Pode-se afirmar que a destruição dos metarrelatos está associada aos acontecimentos do século XX no qual ocorrem acontecimentos reversivos:


(...) sem dúvida ele (o século XX) foi o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década de 1920, como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio sistemático (...) houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão dos padrões então tidos como normais nos países desenvolvidos (...) este século nos ensinou e continua a ensinar que os seres humanos podem aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis, não é fácil apreender a extensão do regresso, por desgraça cada vez mais rápido, ao que nossos ancestrais do século XIX teriam chamado padrões de barbarismo (...) no século XIX os mortos contavam-se às dezenas, não às centenas, e jamais aos milhões. (HOBSBAWM, 1995, P.22)

O ideário racionalista não cumpre sua promessa de origem. A razão, a técnica e a ciência que prometiam uma concepção de progresso, que foi dominante no pensamento europeu, tendo chegado ao auge com a belle époque se convertem em instrumentos da dominação de do controle social.  A partir da segunda guerra mundial, o Iluminismo que deveria ser supostamente a razão emancipadora transforma-se em seu contrário, em sombras e produtor da barbárie que pretendia abolir. (TRIVINHO, 2007)

Justamente nessa passagem posterior às duas guerras mundiais feitas com base na razão na ciência e na técnica que foram utilizados para a destruição radica a crise de paradigmas em que vivemos hoje. “O

Holocausto não foi operado com paixão (...) A violência, a tortura, tornaram-se modernidade, instrumentos da racionalidade política. A violência é hoje uma técnica" (NOVINSKY, 1995 p. 17). 
O mesmo diagnóstico é fornecido pelos teóricos da escola de Frankfurt, fundadores da Teoria Crítica, Max Horkheimer e Theodor Adorno.  Para eles, o processo civilizatório (razão, técnica, progresso) acabou convertendo-se na mais crassa barbárie. No lugar da emancipação, a autonomização da racionalidade implicou opressão, dominação e mistificação.  No século XX, após um longo processo histórico, a razão se autonomiza em relação ao individuo, levando-o a uma total integração à sociedade. A racionalidade tecnológica estabelecida se tornou um instrumento de política destrutiva:

“O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza, em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem da ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las.”(...) “A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a cair sob seu influxo, levado pela mesma dominação.” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985)

O diagnóstico elaborado pelos pensadores da Teoria Crítica na década de 1940 já não aponta para nenhuma possibilidade real de revolucionar a sociedade, em prol de um estado de emancipação. Pelo contrário, as sociedades modernas mostrariam muito mais tendências e situações de extrema barbárie, das quais o nazismo e o stalinismo foram exemplos contundentes. Assim qualquer alternativa ao sistema fatalmente acabaria por parecer aquilo a que procurasse se opor.

Livres das supostas trevas medievais, nós, modernos, abrimos espaço na história e no mundo com nossa sofisticada violência científica e nossa obcecada ética da ação utilitarista. Felicidade material, organização científica da vida, longevidade na banalidade, eis o lema da humanidade emancipada. Como uma velha cantiga de ninar, aprendemos que devemos avançar, romper, construir, erguer um paraíso na terra. Ambos inseguros, os homens autônomos e as mulheres livres. Crianças solitárias cujos avós ridículos nunca poderão cansar. Decidimos que a sociedade não é um contrato entre os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram: apagamos o passado, brincamos com o futuro. Delirando num eterno presente, fizemos do mundo um espaço de lazer, ruído e eterna juventude.

A cultura pós-moderna, esse misto de banalidade tecnológica e néon hedonista, faz ruídos dispersos, a medida em que paralisa de pânico diante da linha do horizonte: absoluta ambivalência do conhecimento e das informações, retorno das manias religiosas supostamente resolvidas (a vingança dos deuses?), repetição monótona de escolhas insignificantes. A devastação das referências cria a sensação suprema de nossa época: a vertigem. Desorientação de quem caminha nas alturas e nas infinitas planícies vazias. Como viver nessa geografia da indiferença?

Eis o medo: como uma fina poeira de gelo, tão fina que se faz invisível, tão insensível que nem racha entre os dentes, nos sufoca, entrando pela boca e cobrindo nossos olhos. Se pararmos, ela nos congela. Antes uma escolha, acelerar agora é nosso único destino.

Sonhando em construir um infinito jardim de perfeição, tudo o que conseguimos foi ampliar as fronteiras do inferno.Viver na pós-modernidade é como patinar num lago congelado. É preciso sempre acelerar, caso contrário, ocorre a queda. Ao mesmo tempo, está presente a todo o momento a sensação de que o chão vai rachar sob nossos pés.a psique vive um conflito inédito na história: podemos desejar tudo, mas não sabemos o que queremos. O maior obstáculo ao desejo não é mais a repressão, mas a liberdade.

Longe de esgotar o assunto, recomendo a leitura das seguintes obras:


ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento - Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985.
ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BAUMAN, Z. Vida Líquida.  Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007.
___________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.
___________. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.
GORZ, A. O imaterial: Conhecimento, Valor e Capital. São Paulo: Annablume, 2005
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.  
HARVEY, D. Condição pós-moderna 5ª ed. São Paulo, Loyola, 1992.
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.


Igualmente proveitosa é a leitura de A Cultura do Narcisismo, de Cristopher Lasch (Ed. mago), estudo sobre o apego narcisista do indivíduo a si mesmo, com estilo meio contestador.
Finalmente, se você nunca esteve com uma granada niilista nas mãos, vá correndo pegar o panfleto altamente explosivo (mas cerebral) do francês Jean Baudrillard intitulado À Sombra das Maiorias Silenciosas (Ed. Brasiliense).

Nenhum comentário: