segunda-feira, novembro 09, 2009

O VESTIDO DE GEISY


Na década de 1970, numa das páginas “infeliz/feliz de nossa história” Chico Buarque de Holanda compôs uma música que à época causou sucesso e controvérsia. Trata-se de “Geni e o Zepelin” do álbum a “Ópera do Malandro”, baseado na “Ópera dos Três Vinténs” de Bertold Brecht. A Música narra uma história de um homossexual. Durante o dia é Genival, e a noite se transveste em Geni. A cidade e seus agentes sociais (o prefeito, o bispo, o banqueiro) são os seus algozes excluindo-a e agredindo-a das formas mais perversas. É uma crítica à hipocrisia social, ao preconceito. Os versos a seguir ilustram essa realidade:

“Joga pedra na Geni
Joga pedra (bosta) na Geni
Ela é feita pra  apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni.”



          Na semana passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava de minivestido rosa, saltos altos,maquiagem. Chama-se Geisy Arruda, filha de uma dona de casa e de um supervisor de serviços, ambos apenas o primário completo, Geisy Arruda, tem um irmão de 32 e duas irmãs (30 e 16). O pai é quem paga os R$ 310 de mensalidade. Mora em um bairro popular em Diadema. Geisy Arruda, já trabalhou em um mercadinho.
           O resultado, amplamente divulgado pela mídia, foi um espetáculo de horror. Aproximadamente 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se aglomeraram numa massa enfurecida: xingaram, fotografaram e filmaram a moça. Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma horda de fanáticos do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.
A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo coro dos boçais escandindo: "Pu-ta, pu-ta, pu-ta"em contraste com os jovens que em maio de 1968 gritavam Luta! Luta! Luta!
Ontem a imprensa divulgou que a Uniban decidiu expulsar a jovem da Universidade por desrespeito às normas. Hoje mediante pressão de setores da sociedade civil e do Ministério Público a Uniban recuou e resolveu aceitar que ela volte a frequentar a universidade.
Esse fato que revela um dos piores momentos de nossa civilização. Curioso é que o mundo moderno se autodenomina um mundo de tolerância e respeito às diversidades contra e toda qualquer forma de fanatismo e misoginia, sentimentos que no Ocidente são atribuídos ao mundo islâmico, terrorista e fundamentalista. Fatos como esses costumam ser imputados ao Taliban e seus congêneres. E nós, o que somos quando nossos jovens manisfestam o desejo de violência por conta de um 'vestido vermelho'.
O que explica esse hiper-moralismo? Conforme análise do psicanalista Contardo Calligaris a turba do “pega e lincha” da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do feminino -não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio. (...)                     O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de "querer"? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um prazer. A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada. (Folha de São Paulo São Paulo, quinta-feira, 05 de novembro de 2009).
Espero que, com isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de seus estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de "O sétimo selo de Igmar Bergman", com redação obrigatória no fim?
Após séculos de civilização iluminista fundamentada na razão, na ciência, no progresso o que dizer acerca desse episódio? O processo civilizatório terminou convertendo-se na mais crassa barbárie? No lugar de  esclarecimento, vivemos um tempo de opressão, dominação, mistificação? Estamos ficando cegos de tanta luz?
Geisy, assim como na música do Chico, um dia, nós  iremos beijar a sua mão!

7 comentários:

Si_moon disse...

Muito interesante essa colocação, confessos que quando soube dessa história toda, logo condenei a moça, pois acredito que em determinados lugares devemos mater determinadas posturas. Porém, acho muito exagero por parte dos alunos insultarem como fizeram, pois, como estudante, várias vezes me deparei com colegas usando trajes iguais aos de Geisy; e nunca vi reação como a dos alunos da Unibam.

Acho que se for usar uma roupa como aquela é condenável, que seja condenável para todas (os); e não apenas para uma pessoa só.

Augusto disse...

Em um país que há desfiles de mulheres peladas, bailes funk e mulheres que cada vez mais estão se desvalorizando e/ou vulgarizando, acontece isso...Apesar de não achar "certo" a forma com que estava vestida...a vida é dela, as "coisas" são dela, que ela use o que quiser.O que não pode é querer critica-la por uma coisa que, atualmente, é praxe.

E viva a liberdade!

Raphael Meciano disse...

Assusto-me com os dois comentários acima.
Aparentemente contrários à atitude da massa de estudantes na UNIBAN, os dois indivíduos que postaram seus comentários revelam os mesmos valores que motivaram a deplorável atitude daqueles que achincalharam Geisy.
Augusto diz: "mulheres que cada vez mais estão se desvalorizando e/ou vulgarizando, acontece isso...”
O que quer dizer Augusto com “mulheres se desvalorizando e/ou vulgarizando”. Será que se refere à nudez? Será que se refere à liberalização sexual? E se ele se refere a isso, por que isso é ruim? Por que vulgarização e desvalorização? Talvez porque leve a situações como a ocorrida no campus da UNIBAN (Nas palavras de Algusto: “acontece isso”)? Então a moça é culpada da agressão cometida contra ela?!!
MO diz: "...confesso que quando soube dessa história toda, logo condenei a moça, pois acredito que em determinados lugares devemos mater determinadas posturas... Acho que se for usar uma roupa como aquela é condenável, que seja condenável para todas (os); e não apenas para uma pessoa só."
O que é isso?!!! Então devemos condenar todo o tipo de nudez ou a pouca roupa e dizer que isso é algo imoral? Condenar o desejo sexual? E será que a nudez em si representa o fato do desejo sexual? E se representar? A mulher não tem esse direito? E se tem esse direito - o de demonstrar que é um indivíduo dotado de desejos – tem também o de saciar seus desejos com quem quer bem, ou for de sua escolha, fazendo então sexo que é, acima de tudo, um ato de reciprocidade em que ambos (homem e mulher) são dotados de vontade.
A moça poderia estar nua! O comprimento de sua roupa não é justificativa para a turba que se formou a berrar “PUTA, PUTA,” parecendo estar pronta para “apedrejar Madalena”. A discussão, de forma alguma, pode migrar para a atribuição de culpa à vítima!
Que erro existe em estar com roupa curta ou em estar nu? Quem será imoral: uma moça com uma saia curta que passa à rua? Ou um homem que não consegue controlar seus instintos e ataca a dita moça e a força a um ato sexual?!!

MULHERES e HOMENS.. ACORDEM!!!!!

Felipe FernaNdeS disse...

Embora não tão radical, concordo com a opinião do Raphael.

Não vi a notícia logo no dia do ocorrido, mas confesso que quando a vi, fiquei embasbacado. Como jovem, como aluno e como homem, não posso deixar de dizer que me senti, sobretudo, decepcionado. Decepcionado com o barbarismo que presenciei, com a supressão do cavalherismo e mesmo do respeito, embora vivamos já no século XXI - ou seria XVI?

Como dito, elegeram a herege, escolheram o pecado que teria sido 'cometido' e então a crucificaram. E tudo isso por quê? Só por ela estar trajando uma roupa curta? E é isso crime agora? Pecado, talvez? Penso então que estes mesmos 'manifestantes' (para não dizer marginais, seja do ponto de vista cultural ou intelectual) devam estar agora reunindo-se em segredo para 'protestar' em uma praia ou em outra zona litorânea qualquer contra o uso de biquinis ou de shorts demasiados curtos. E por que não distribuir vestes mais longas também? Por que não manifestar contra os profundos e reflexivos comerciais de cerveja? Por que não incitar uma ação contra o Estado a fim de proibir o samba e o carnaval? Ah sim, é porque isso tudo faz parte da "cultura brasileira".

E é claro que o brasileiro, o verdadeiramente brasileiro, não iria contra sua cultura. Exilar as modelos semi-nuas dos infervalos de futebol? Que absurdo! É mesmo um absurdo. É um absurdo que sejam tão hipócritas, tão medíocres, tão limitados.

Imagino, contudo, se continuariam a chamá-la [Geisy] de "puta" se fosse ela uma de suas irmãs, primas ou outro parente qualquer. Creio que não. Mas como ela não era nem uma, nem outra, podiam, não podiam? Afinal, ela não estava à mostra numa praia, não estava num intervalo de futebol e sequer estava sendo exibida por um espetáculo circense como o carnaval. Então, é evidente que podia ser humilhada, julgada e posta aos "lobos".

Perguntam-me ainda se sou nacionalista, sabe o que respondo? Digo que tenho fé no Brasil, mas não no brasileiro.

Aos alunos da UNIBAN que participaram desta exibição de regresso total do homem à condição de irracional e estúpido, fica o meu pesar e a minha compaixão. Afinal, o carceireiro é tão vítima do açoite quanto a vítima é do sistema.

Felipe FernaNdeS disse...
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Augusto disse...

Concordo com o Felipe nos assuntos que ele tratou...agora irei explicar algumas dúvidas do Raphael:

"Será que se refere à nudez?"

Exatamente, em um país igual o Brasil isso já se tornou comum, o que fizeram foi hipócrita e ridículo para a sociedade

"Por que vulgarização e desvalorização?"

A sociedade brasileira está cada vez mais vulgar não acha?Entre em um ônibus público pra ver...hahaha
Cada vez mais se desvalorizando, isso é ruim, pra mim faz se vestir desse modo acho muito apelativo e faz perder a própria graça da sensualidade, porém é minha opinião e isso não importa, o que fizeram com a garota da unibam foi errado, independente de qualquer coisa.É facil ver, acho que o Brasil será sempre assim, o que faz sucesso facilmente, a apelação ao sexo(tanto em livros quanto filmes), isso mostra como é a sociedade.

"Nas palavras de Algusto: acontece isso"

A culpa não foi dela, acontece isso pois foi surpreendente como os estudantes agiram em um país bem liberal nesse assunto(roupa) como o Brasil neh?!

Tá certo, no ambiente que ela estava não ACHO adequado uma roupa daquelas, porém mais errado ainda é como os alunos se comportaram.

é algo do nosso cotidiano isso, é exatamente como Felipe disse:
"se fosse ela uma de suas irmãs, primas ou outro parente qualquer. Creio que não."


Abraços a todas, a todos e aos demais(kkkk)

Anônimo disse...

Música, comparação e ponto de vista excelentes!