sábado, janeiro 11, 2014

SOFRO, LOGO COMPRO


Consumidores fazem fila para aproveitar liquidação em Piracicaba (Foto: Thomaz Fernandes/G1)

Mãe e filha encaram 20 horas de fila por celular e netbook em liquidação


“Clientes improvisaram camas e passaram a noite na rua por desconto. Para garantir descontos de até 70% em aparelhos eletrodomésticos e eletrônicos, consumidores encararam filas de até 21 horas em cidades do Sul de Minas durante o saldão de uma franquia de departamentos, que promoveu liquidações desde às 6h desta sexta-feira (10). Em Varginha (MG), a doméstica Ilma Carvalho Ferreira foi a primeira a chegar, por volta das 13h de quinta-feira (9). Ela correu para garantir uma máquina de lavar roupas. Às 4h da madrugada, mais de 300 pessoas já aguardavam para aproveitar os descontos e o calçadão da Avenida Wenceslau Braz ficou movimentado. Vencidos pelo cansaço, muitos improvisaram uma cama na calçada. O barman Talison Baroni não se intimidou. Puxou a coberta e dormiu à espera da abertura da loja. O descanso fez com que ele conseguisse comprar até 10 produtos por menos de R$ 1 mil. “Eu encontrei até itens de R$ 1”, disse. (Fonte: G1)

Esse fenômeno social demanda reflexões acerca da nossa época: a emergência da sociedade de consumo governada pela lógica do mercado na qual o desejo estético, via Indústria Cultural, é transformado em mercadoria.

Na linha argumentativa recomendo a leitura do livro "Consumido - Como o Mercado Corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos" (Record), de Benjamin Barber.

A condição do indivíduo no cenário da sociedade de consumo é ambígua: no consumo desenfreado de bens estéticos o sujeito é “maximizado”, não encontrando limites para si e transformando seu prazer na medida do relacionamento com o mundo (incluindo os demais sujeitos); por outro lado, o sujeito (consumidor) não vê que seus desejos são criados artificialmente; o consumo só se fortalece quando o sujeito acredita estar comandando as decisões, quando, na verdade, encontra-se sem nenhuma opção de escolha.

Outro caminho para compreender a condição contemporânea é a leitura da obra de Lipovetsky A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. O filósofo provoca-nos a reflexão acerca dos infindáveis paradoxos de felicidade que permeiam a sociedade que, segundo ele, é matizada pelo hiper-consumo.

O livro divide-se em duas partes: 1) A sociedade do hiperconsumo e 2) Prazeres privados, felicidade ferida. Na primeira parte, o livro oferece, a partir de três balizas específicas, a evolução do capitalismo de consumo e seus desdobramentos na vida moral, afetiva e social dos indivíduos. A fase I, com início por volta de 1880 e término marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, é caracterizada pelo autor como a fase da distribuição. A partir do desenvolvimento dos mercados nacionais e a facilidade para escoação da produção das indústrias que evoluíam a cada dia.

A fase II, com início por volta dos anos 1950 que se estendeu até meados de 1980, é marcada principalmente pela lógica da quantidade, da produção em larga escala, o consumo de massa, com o que se chamou de “a sociedade da abundância”. A facilidade de acesso a bens e serviços, a praticidade dos eletrodomésticos e principalmente o “nascimento” do sentimento de competitividade entre as empresas, culminaram com a invenção do marketing que por sua vez, focou a atenção das corporações para as constantes necessidades e satisfação do cliente.

A fase III se caracteriza principalmente pela relação emocional do indivíduo com a mercadoria. Passado a euforia do consumo de massa característico das décadas anteriores, o consumo da terceira fase é norteado acima de tudo pela satisfação do “eu”, a busca pelo bem-estar.
Enquanto a fase II trouxe para o presente o momento de satisfação da compra, o status a partir de automóveis, eletrodomésticos, roupas, na fase III, a ostentação deixa de ser o principal motivo que induz ao consumo, dando início à era do bem-estar, no qual o acesso ao conforto, satisfação dos prazeres passa a ser a principal motivação para a felicidade.

O consumo emocional, diferente do marketing tradicional, passa a mostrar para o consumidor a importância da experiência e das memórias afetivas ligadas à marca. A partir de experiências sonoras, odores de lojas e ambientes diferenciados, estimulam os sentidos, envolvendo o consumidor que compra não mais pela qualidade do produto, mas pelo seu conceito e visão de vida. É o imperativo da imagem a partir do imaginário da marca.

Na sociedade do hiperconsumo, não se reprimem mais os “abusos” do consumo. Pelo contrário, neste momento, os indivíduos não compram mais tão motivados pela pressão social, mas motivados pela vontade, para a satisfação do próprio prazer. Vivemos num momento de hedonismo, onde o indivíduo necessita para a visibilidade social se apresentar como pleno, satisfeito e feliz.
“Sofro, logo compro”, representa a ideia central do que Lipovetsky analisa como sendo as compras o ópio da sociedade que, quanto mais isolada e frustrada com a solidão, tédio do trabalho, fragmentação da mobilidade social, segue buscando o consolo na felicidade imediata proporcionada pelas mercadorias. A carência suprida pela compra, pelas vivências extraordinárias proporcionadas pela indústria de experiências  e dos shoppings centers, apresentados como espaços de abstração e divertimento para todos a qualquer hora.

Concluindo o consumo como forma de fazer transparecer a condição de felicidade propiciada pelas novas experiências.

Na segunda parte do livro, Prazeres privados, felicidade ferida, são apresentadas reflexões sobre como questões referentes aos desejos e frustrações provocados a partir do impacto dos valores da publicidade e do individualismo são processados pelos indivíduos. Nesta fase, a sociedade caracterizada como livre defronta-se com mais paradoxos: é livre pelo direito conquistado pelas escolhas e diversidade de opções, e ao mesmo tempo está presa pelas condições impostas pelo mercado, pelas amarras da publicidade, valores culturais e pelas frustrações que não consegue superar.

O autor aponta então o uso das “pílulas da felicidade” como sendo a medicalização a saída encontrada para resolver as síndromes, pânicos e depressões decorrentes não apenas do não saber lidar com situações de fracasso, mas também como uma forma de fuga de enfrentamento de problemas reais e aceitação social.
Por fim, o autor observa que a sociedade do hiperconsumo, assim como as fases anteriores, também tem um “prazo de validade” corrente. E que sua exaustão se dará, principalmente, a partir, da inversão dos valores atuais. Onde não mais será exaltado o “super-homem”, perfeito e sem fraquezas; e o hedonismo já não constituirá o princípio estruturante da vida. Comprar, adquirir e renovar não mais serão atos ligados diretamente ao alcance da felicidade.

Com uma importante contribuição para a compreensão do sentido da felicidade e do bem-estar nas sociedades modernas, o autor traz em seu trabalho reflexões sobre o futuro da era do pós-hiperconsumo, a produção de sentidos na contemporaneidade, sobre a sociedade da hipervalorização do “eu”. Faz-se necessário o entendimento que, embora a felicidade ainda seja o principal motivador das conquistas individuais, nem sempre poderá estar aguardando como um “fabuloso destino”. Homens e mulheres precisam aprender a sustentar e trabalhar com suas frustrações sem a necessidade imediata do ópio da mercadoria efêmera.

No campo do consumo a suposta maximização se torna, paradoxalmente, o seu contrário: um aniquilamento do sujeito e de sua capacidade de julgar.

Outro aspecto a “enquadrar” num retrato da cultura contemporânea é que não basta apenas consumir. Como ressalta o sociólogo Zygmunt Bauman  em seu livro: Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Não basta consumir é preciso também ser “consumível”, transformando a própria aparência em commodity capaz de ser oferecida tanto para relacionamentos quanto para o mercado de trabalho. Um dos sinais dessa transformação da aparência em commodity está no boom dos sites de relacionamento, nos quais o produto que se coloca no mercado é o próprio indivíduo.

"Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável." (BAUMAN, 2008, p. 20).

Para ingressar de maneira competitiva no mercado é preciso sair da invisibilidade, destacando-se da massa. Não é de estranhar que o sonho alimentado por muitos é de conquistar fama a todo custo , como se isso fosse o verdadeiro sentido da vida e a única chance de conquistar a felicidade. Ser famoso significa simplesmente aparecer em milhares de revistas, milhões de telas, ser notado e comentado. Isso é crucial para ser finalmente desejado, cobiçado, como pretendem todas as mercadorias: “numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fada” (BAUMAN, 2008, p. 22).

Reduzir o ser humano a um consumidor ou a algo a ser consumível é, no mínimo, uma barbárie silenciosa. 

Em tempo. A chamada sociedade de consumo já foi objeto de reflexão crítica por parte de pesquisadores vinculados a diferentes tradições filosóficas. Entre eles aqui destacamos: LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007; BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008; BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2005. BARBOSA, Livia. Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2004; . BARBOSA, Livia; CAMPBELL, Colin (Org.). Cultura, Consumo e Identidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. FEATHERSTONE, Mike. Cultura do Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995; MOULIAN, Tomás. El Consumo me Consume. Santiago de Chile, ©LOM Ediciones, 1998. BARBER, Benjamin. Consumido - Como o Mercado Corrompe Crianças, Infantiliza Adultos e Engole Cidadãos" . Rio de Janeiro: Record, 2010. 

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