quarta-feira, março 25, 2009

A razão produz monstros


O filósofo alemão Immanuel Kant publicou no século XVIII um tratado intitulado Paz Eterna no qual defendeu a criação de uma “Liga das Nações” como instrumento político das relações internacionais. Para ele as nações deveriam unir-se para assegurar uma coexistência pacífica entre os povos. Kant confiava no poder da razão humana como uma força que levaria as nações a sair do desenfreado estado natural que gera as guerras, assinando um acordo de manutenção da paz. Kant sabia que isso só seria alcançado com o tempo, mas considerava nosso dever trabalhar para assegurar a paz. Um pouco depois o artista espanhol Francisco de Goya produziu uma gravura de onde tomamos emprestado o título, na condição de paráfrase desta dissertação; nela se lê: "El sueño de la razón produce monstruos". Entre muitas outras coisas, Goya nos lembra que no limiar da razão existe um mundo fantástico com o qual nos encontramos no sonho, no sono. O irracional do sonho é arcaico e nos remete à animalidade do homem. Kant e Goya acreditavam no poder da razão humana como força capaz de domesticar nossos instintos violentos e promover uma ética de tolerância respeito na convivência entre os povos engendrando assim a paz. Para saber se a utopia de Kant e Goya se realizou é preciso perscrutar a história.
Kant faleceu em 1804 no mesmo ano em que Napoleão Bonaparte foi aclamado imperador da França, sendo coroado com o título de Napoleão I na Catedral de Notre Dame. Seu longo reinado foi denominado “Bonapartismo”. O conceito foi uma expressão usada para designar o exercício, pelo Estado, de uma arbitragem entre as classes e forças sociais que assegura as condições de estabilidade necessárias para a promoção do desenvolvimento sob a liderança da burguesia. Logo depois de sua ascensão Napoleão por meio de guerras sangrentas logrou em realizar seus planos expansionistas cuja tônica era libertar a Europa do despotismo e propagar os ideais revolucionários iluministas propugnados pelo dístico ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. O sonho da libertação rapidamente se converteu em imperialismo. Começa a haver uma sensação de que a utopia iluminista rimava com barbárie.
Napoleão foi derrotado. A Europa emerge das cinzas e encontra a estabilidade nas decisões do Congresso de Viena. As novas elites estavam convencidas que o clamor da revolução era perigoso. Era preciso defender a ‘ordem’ para buscar o ‘progresso’. O Capitalismo do século XIX vive seus dias de glória. O projeto moderno era tributário histórico desse conjunto de idéias que se sintetizou na ideologia do progresso técnico e tecnológico.
A combinação entre expansão econômica e progresso técnico resulta na multiplicação dos confortos materiais, no o avanço e a difusão do conhecimento, na decadência da superstição, nas as facilidades de intercâmbio recíproco, no abrandamento das maneiras, no declínio da guerra e do conflito pessoal, na limitação progressiva da tirania dos fortes contra os fracos, nas grandes obras realizadas em todos os cantos do globo graças à cooperação de multidões. Instaura-se a crença de que progresso cujo auge foi a belle époque.
O progresso era caudatário do Iluminismo que significava também a emancipação da humanidade, isto é, a libertação das tutelas próprias da infância. No ventre do iluminismo gesta-se o cientificismo moderno.
Progresso e ciência justificavam a intervenção européia em outros continentes com o intuito de ‘civilizar’ as culturas ‘selvagens’ e ‘retrógradas’, mas era incapaz de explicar, entretanto, as dificuldades pelas quais passava a própria Europa. Naquela época, como hoje, os frutos do progresso não eram igualmente distribuídos e nem todos participavam das benesses da civilização. Inúmeros movimentos de reivindicação de camponeses e operários provavam isso. Imperialismo na África e na Ásia acirravam as disputas entre as nações européias erodindo a possibilidade de manutenção da paz. O excessivo racionalismo cientificista obnubilava as contradições inerentes do capitalismo.
Um século após a derrota de Napoleão em Waterloo bastou para demonstrar a falência do projeto moderno. O século XX, já conhecido pelos historiadores como Era dos Extremos chega revertendo todos os processos. Ocorrem acontecimentos reversivos: duas guerras mundiais, totalitarismo de direita e de esquerda, campos de concentração, dizimação em massa, desenvolvimento de armas nucleares, degradação do meio ambiente, deteriorização da vida social. O que era uma bandeira dos iluministas, por cuja sustentação se mobilizou uma enorme soma de energias em diversas épocas, revelou-se pura fábula. A ideologia do progresso, pois não cumpre sua promessa de origem. A razão, a técnica e a ciência se convertem em instrumentos da dominação de do controle social e o Iluminismo antes caudatário da liberdade se transforma em instrumento do poder conservador. Opera-se a própria dialética do iluminismo. O Holocausto não foi operado com paixão. A tortura tornou-se instrumento da racionalidade política. A violência converte-se em técnica. A situação se reverte. Em meados do século XX, a partir da segunda guerra mundial, o Iluminismo que deveria ser supostamente a razão emancipadora transforma-se em seu contrário, em sombras e produtor da barbárie que pretendia abolir.
A ordem mundial que emerge do pós-guerra não produz cenários lúgubres. Nas décadas da Guerra Fria quando ‘a guerra era improvável e a paz impossível’ a razão despertou a barbárie. O mundo bipolar suscita revoluções políticas e culturais em nome de programas partidários e com a promessa de um mundo melhor. De um lado crescimento econômico, avanços nas esferas do convívio social, e um incontestável desenvolvimento no campo da comunicação eletrônica, de outro, fabricação voraz de armas, ampliação da clivagem entre pobres e ricos, devastação ambiental. Graças à corrida espacial e aos satélites o mundo ficou muito perto, e a nossa capacidade de convivência muito longe.
A Guerra Fria terminou com celebrações de que a História chegou ao fim e as utopias morreram. Nos funerais da ordem bipolar comparecem novos teólogos da pós-modernidade: os economistas neoliberais. Deixam flores secas no velório do velho e carcomido sistema estatal e partem para a maternidade assistirem a ressurreição dos profetas da livre-iniciativa. Presenteiam com incensos a nova (velha) lógica do ‘mercado máximo’. Na aurora do novo século batizam a nova ordem de globalização. No âmbito militar é monopolar. No âmbito econômico é multipolar. Os teólogos da nova religião do mercado empostados nas tribunas do saber acadêmico vociferam: não há alternativa à globalização capitalista. Seus ideólogos alhures da ética humanista apregoam: fora do mercado não há salvação. A América Latina segue a cartilha do Consenso de Washington. O século XX termina sem muro. Ao sul do equador ouvem-se lamentações.
Os ruídos dos eventos de onze de setembro de 2001 despertaram a razão adormecida. A esperança de Kant pela paz perpétua arrefeceu. O planeta se confraterniza pela rede, o mercado unifica as diferenças, e o grande irmão do norte nos protege dos terroristas. A cantilena da guerra necessária convence os espíritos menos argutos. As relações internacionais cerzidas pela política externa vicária estadunidense acachapam a utopia da coexistência pacífica. A nova ordem exige a subordinação ao mercado e aos valores ocidentais. Quem se opõe é castigado. Seu destino é a velha forca dos filmes de faroeste.
Depois da invasão do Afeganistão e da ocupação do Iraque fica claro que a crise internacional alcançou seu paroxismo. O capitalismo globalizante venceu em quase todos os quadrantes do orbe terrestre não porque seja o signatário de um compromisso humanista, mas sim porque é proprietário poderio militar e econômico mais do que suficiente para tanto. Em nome da razão e do capital a hegemonia norte-americana venceu, mas não convenceu. Mais que a racionalidade é preciso ter a justiça do seu lado. O que o capitalismo nunca teve e jamais terá. A crise política recrudesceu e atualmente as relações internacionais estão longe de atingir um patamar de paz. A violência tornou-se legítima. Morte aos infratores da lei do mercado.
A grande tarefa que incumbe agora a todos é fazer com que os jovens do mundo inteiro não sejam cooptados pelas forças da morte instrumentalizadas pelo racionalismo e do consumismo voraz. Que se engajem de corpo e alma, na luta universal em favor da vida. É preciso que a razão instrumental utilizada para a guerra e ao lado das forças destruidoras adormeça para que a justiça triunfe.
escrito em maio de 2008.

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